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    Roberto Amaral

    Cientista político e ex-ministro da Ciência e Tecnologia entre 2003 e 2004

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    É preciso desmilitarizar a República

    "A questão republicana mais urgente é a erradicação do militarismo a que tanto deve a tragédia nacional", escreve Roberto Amaral

    (Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil)

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    "Por ora, a cor do Governo é puramente militar, e deverá ser assim. O fato foi deles, deles só, porque a colaboração do elemento civil foi quase nula. O povo assistiu àquilo bestializado, atônito, surpreso, sem conhecer o que significava. Muitos acreditaram seriamente estar vendo uma parada."
    - Aristides Lobo (Diário Popular, 18/11/1889)
     


    Implantada por um golpe militar, a República brasileira sucede um Império anacrônico, sem pretender romper com sua ordem econômico-social, fundada no escravismo e na lavoura. Com ela sobrevive a sociedade patrimonialista, excludente, profundamente desigual e conservadora que hoje nos espanta. Despida de republicanismo (doutrina que jamais chegou ao povo e era desconhecida pelas tropas que desfilaram pelas ruas do Rio de Janeiro em 1889), a república nascente conservaria as duas características básicas da monarquia, a cuja natureza reacionária seus líderes não se opunham de fato: a ausência de povo e de representação, fragilidade que a perseguirá por quase um sesquicentenário, o tempo de sua vida até aqui. A reforma, na realidade, jamais foi objetivo dos oficiais golpistas; pretendendo derrubar um gabinete malquisto por eles, terminaram destronando o imperador longevo – pelo qual, aliás,  o país nutria reconhecida empatia.   

    A República, um projeto das elites que não cogitou do concurso do povo, se impõe para que, mudando-se o regime, em nada fosse alterado o mando: o Brasil agrário da monarquia sobreviverá na República da lavoura exportadora do café, herdeira das exportações de madeira, açúcar e ouro, matriz da sociedade exportadora de grãos, carne e minérios in natura. No império e na república, continuamos cumprindo o papel de fornecedores das mercadorias   que o mundo rico demanda. Para cumprir com seu destino chega descasada da democracia, exatamente um século após a matriz cunhada pela revolução francesa. Nos estertores do século XIX continuávamos sendo um país cuja política desconhecia a participação popular: sem povo, sem partidos, fizéramos a independência e construíramos o império; sem povo deveríamos fazer a república sereníssima. Entre nós, a res publica é capturada pelo interesse privado. Somos conservadores até com relação à classe-dominante:  herdeira da casa-grande, é a mesma desde o Brasil-Colônia.

    Contra o unitarismo monárquico, no entanto abraçado pelos jacobinos que articularam o golpe, a constituinte fundadora da República (1891), dominada pelos representantes da ordem descaída, optou pelo federalismo defendido pelo latifúndio e pelo escravismo, que, assim, sem serem frustrados pela História, como veríamos, esperavam conservar o mandonismo local, aquele sentado na grande propriedade. A terra continuava vencendo. A República vai consolidar-se como o regime da hegemonia das oligarquias, que só conheceria seu declínio com o golpe de 1930, sobretudo com o Estado Novo (1937-1945) que, por sinal, investirá contra o federalismo. E hoje, ainda lutando pela consolidação do nosso limitado processo democrático, podemos registrar dois fracassos rotundos: o da República, jungida aos interesses privados, e o do federalismo, inviabilizado pelos escandalosos desníveis regionais, caldo de cultura de uma crise em gestação.

    Mal saído do escravismo, cujas marcas conservaria até os dias que correm, o país dava os primeiros passos na aventura capitalista preso aos interesses da terra dominantes desde a colônia: a República era a solução das elites para a crise política agudizada pela Abolição. Na República, como no império, sob os traficantes de escravos e senhores de engenho ou sob o cutelo dos “coronéis”, o país continuaria sem projeto, sem rumo, preso às forças do atraso que obstaculizavam a industrialização. Numa história recorrente, o antigo regime colonial se projeta no império agrarista, que por seu turno sobreviveria numa república indiferente à manifestação da soberania popular, eis que dominada por um sistema eleitoral escandalosamente fundado na fraude. Como falar de República em sociedade pervadida pela desigualdade social e a exclusão das grandes massas da cidadania? Em vez da ruptura que abriria as portas ao progresso, impõe-se a conciliação que mantém a ordem do passado. Daí a indiferença com a qual foi recebida a fratura política aparentemente tão radical. Para a classe-dominante, a transição de regime não passaria da simples troca de um imperador vitalício por um presidente eleito pro-tempore. No fundamental,  tudo continuaria como dantes no quartel de Abranches. E assim continuou.

    O 15 de novembro, movimento das elites sem raízes na organização social, foi, não obstante suas consequências institucionais e políticas, uma quase ópera-bufa, encenada por atores que, no seu conjunto, ignoravam o papel que lhes cabia desempenhar. O mais deslocado de todos era o velho marechal, retirado da cama de enfermo para se transformar em herói. A cena contempla momentos burlescos.

    Convencido, após muita relutância, de que deveria atender ao chamamento político de seus comandados, posto em sua farda de gala com o auxílio do ordenança, Deodoro monta em um cavalo que lhe é trazido por um miliciano, atravessa a pequena distância que o leva ao Campo de Santana e, sem espada, mão direita levantada, saúda como saudavam os comandantes assumindo a tropa: “Viva o Imperador!”, a que a tropa (atendendo a um reflexo condicionado, como de hábito) ecoou: “Viva, para sempre!”. O capitão José Bevilaqua, positivista e seguidor de Benjamin Constant, narra o episódio a que assistiu:  “Chega  o momento supremo da proclamação. O general Deodoro hesita ainda ante nossas instâncias, a começar pelo Dr. Benjamin, Quintino, Solon, etc., etc. Rompemos em altos e repetidos vivas à República! Abafamos o viva ao Senhor D. Pedro II, ex-Imperador, levantado pelo general Deodoro, que dizia e repetia ser ainda cedo, mandando-nos calar! Por fim, o general, vencido, tira o boné, e grita também: Viva a República! A artilharia com a carga de guerra salva a República com 21 tiros!” (Vide MENDES, R. Teixeira. Benjamin Constant. Rio de Janeiro. Ed. do Apostolado Positivista do Brasil,1913. pp. 356-7).

    Implantado, por um golpe militar levado a cabo pela oficialidade do exército sediada na então capital do Império, repita-se, o novo regime é a avenida pela qual trafegam rupturas constitucionais e irrupções militares que chegam aos nossos dias. Nasce com o golpe de 1889, a que se seguem o golpe frustrado de Deodoro (1891), o golpe de Estado de Floriano e a primeira ditadura republicana, conhecida como “ditadura da espada”,  e de permeio contabiliza duas revoltas da armada (uma contra Deodoro e outra contra Floriano, que assumira já confrontando a constituição republicana recém promulgada) e o levante das fortalezas de Santa Cruz e Laje (1892). Consolida-se o militarismo que havia sido atenuado pela assembleia constituinte (formada por representantes da lavoura, quase todos vindos do antigo regime) e influenciada pelo liberalismo de Rui Barbosa.

    Mas era só o começo de uma série de crises políticas e intervenções militares que parece não ter fim: duas cartas outorgadas (1937 e 1967); duas longevas ditaduras (a de 1930-1945, com o intermezzo constitucional de 1943-1937 e a de 1964-1985); após os levantes das fortalezas de Santa Cruz e Laje (1892) a  revolta da armada contra o presidente Floriano (1893), após a “ditadura da espada” (1891-1894), seguida pelo  massacre, pelo “exército pacificador de Caxias”, dos camponeses de Canudos (1896-7) e o massacre, pela Marinha, dos heróis (previamente anistiados) da Revolta da Chibata (1910);  três levantes militares (1922, 1924 e 1935);  a insurreição paulista de 1932; o putsch integralista de 1938; o golpe militar de 1945 que derrubou o Estado Novo que outro golpe militar havia implantado em 1937; o golpe de 1954 que depôs Getúlio Vargas; a tentativa de golpe para impedir a posse de Juscelino Kubitscheck (1955); o golpe militar para garantir a posse dos eleitos (o 11 de novembro de 1955); os motins da aeronáutica contra o governo JK (Jacareacanga em 1956 e Aragarças em 1959); a tentativa de golpe para impedir a posse de João Goulart (1961), o golpe parlamentar de 2016 e o continuado projeto de golpe sustentado pelos militares no governo Bolsonaro que se mantém de pé até hoje, podendo ameaçar a posse de Lula e acompanhar seu governo.

    Como visto, a preeminência sobre a vida civil e a ruptura da ordem democrática são a marca indelével da caserna insubordinada na vida republicana, e assim ela chega aos nossos dias, valendo-se das armas – que a nação lhe entrega para a defesa da soberania – para promover seguidos atos de desestabilização institucional contra os interesses do país.

    Na raiz de tantos males a impunidade, o outro nome da “conciliação” que permeia uma história dominada pela cada-grande.   

    À insolência das notas dos atuais comandantes das forças militares do Estado brasileiro sobre o processo eleitoral, coordenadas pelo ainda ministro da defesa, soma-se recente carta de antigo comandante do exército, missivista do golpismo desde sua agressão à autonomia do STF.  De qualquer forma é estranho que, privado da fala e dos movimentos, possa ditar e escrever uma declaração pública em que estimula a insurreição contra a soberania do voto e trata como patriota uma escória que vai à porta dos quartéis pedir mais um novo golpe.

    A questão republicana mais urgente – sem dúvida o desafio político-institucional de maior relevo – é a erradicação do militarismo a que tanto deve a tragédia nacional. Não se trata, tão-só, da efetiva subordinação do soldado ao poder civil. Trata-se de seu rigoroso enquadramento disciplinar. Ou seja, da repressão à sua permanente insubordinação, tanto mais repugnante quanto se opera mediante o uso ilegal da força contra pessoas e instituições desarmadas.

    É chegada a hora de colocar o guizo no gato. Este, o desafio republicano.

    ***

    Um medalhão na Big Apple – Com uma fala abjeta proferida num convescote empresarial em Nova York, aonde ministros do STF (irregularmente sobre-remunerados por empresa privada especializada em lobby) foram flanar e falar de temas brasileiros, Dias Toffoli, exemplarmente medíocre como advogado e juiz, conseguiu ofender a memória de dois países ao mesmo tempo: a Argentina e o Brasil – a cuja Constituição, democrática, deve respeito e obediência funcionais. Como dizia o inesquecível Barão de Itararé, “de onde menos se espera, daí é que não sai nada, mesmo”. Ou sai porcaria.

    * Com a colaboração de Pedro Amaral

    * Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

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